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Segurança, uma questão de gerenciamento dos riscos

Atualizado: 4 de fev. de 2021

"É muito perigoso!"

"Tu não tem medo de morrer?"

"Eu teria medo!"


É inevitável, o montanhismo é sempre relacionado à risco, no caso, risco eminente de morte ou lesões muito graves. E comigo não é diferente, ao mesmo tempo que tinha uma curiosidade tremenda de experimentar alta montanha, também tinha muito medo, um dos motivos que me levou a começar com um curso de escalada em gelo, como comentei no post anterior.

Fazer o curso não me fez deixar de ter medo, mas me ensinou a lidar com ele, e principalmente com os fatores geradores deste medo. Além disso, a experiência em montanha, me fez encarar o medo como um aliado, aquele "amigo" que me faz ter precaução e submeter minhas expedições (todas elas, desde um dia de escalada até uma escalada em um 8.000m) a uma gestão de risco ampla. Quando estou muito confiante e de certo modo sinto a ausência de medo entro em estado de alerta, pois posso estar negligenciando riscos que eventualmente deixei passar.


Este post é dedicado a explicar um pouco de que modo estruturo essa gestão de risco, bem como explicar um pouco que equipamentos e serviços me utilizo a fim de tornar as atividades mais seguras (e de certa forma mais tranquilas para aqueles que estão em casa, que acabam sendo os que mais sofrem).


De maneira geral abordo a segurança em meu planejamento com enfoque em quatro pilares:


Planejamento

Este é um assunto amplo, e que muitas vezes parece não estar relacionado ao fator segurança, mas são os problemas de planejamento que tendem gerar situações de risco e emergência em uma escalada. Gosto de montar um planejamento baseado em respostas a algumas perguntas :

- Quantos dias/horas a atividade demandará? Em condições normais, e também ocorrendo contratempos previsíveis. A resposta a esta pergunta norteará toda provisão de suprimentos (alimentos, gás, medicamentos, etc) e equipamentos.

- A que nível de isolamento estaremos submetidos? Está pergunta nos proverá informações para estabelecer o quanto precisamos estar preparados para gerenciar de maneira autônoma situações de risco ou acidentes. O nível de isolamento também nos auxiliará a decidir que tipo de equipamentos de comunicação devemos levar conosco.

Importante: Caso não se sinta confortável com o nível de isolamento considere postergar sua expedição para quando tiver mais experiência.

- Que altitude máxima alcançaremos? Diretamente relacionada a primeira pergunta, a altitude máxima a ser alcançada nos proverá informações sobre a necessidade de dias extras de aclimatação na montanha, bem como provisão de medicamentos e equipamentos que nos auxiliem a identificar o bem estar de todos participantes.

- Qual a disponibilidade de água na região e no período? Nem sempre teremos água disponível, algumas vezes estará congeladas, outras vezes será turva, outras vezes precisaremos transportar. E as condições podem ser muito diferentes em diferentes temporadas e estações do ano. Negligenciar a disponibilidade de água pode transformar uma atividade simples em uma tragédia.

- Qual a exigência técnica da atividade? Gosto de dividir esta resposta em duas: em condições "normais" que habilidades e equipamentos serão necessários, que determinará que equipamentos todos integrantes devem ter; e em casos extraordinários, como nevascas extremas ou necessidade de resgate, que equipamentos extras pelo menos o guia, ou inclusive mais integrantes, precisam ter.

Estas respostas, sempre que possível, devem ser respondidas tendo como fonte relatos e experiências de pessoas que já estiveram no local da expedição, e dados da geografia da região. Ou seja, não existe um banco de dados único, e quanto maior nossa base de pesquisa maior nosso acesso a fontes.


Procedimentos

Assim como toda atividade, extrema ou não, o montanhismo tem suas boas práticas, e tal qual devem ser seguidas. Divido os procedimentos a serem adotados em três categorias:

Técnicas de Escalada - os procedimentos de segurança em escalada são semelhantes nos diversos ambientes que possamos estar submetidos, seja uma escalada esportiva, um big wall, uma escalada alpina ou uma das montanhas de 8.000m, e não pretendo neste artigo descrevê-los, e para isto temos manuais e cursos de escalada muito bons.

Gosto sempre de ressaltar que estas boas práticas devem ser aplicadas sempre, independente de a situação demandar precaução ou não, pois nos momentos de crise, por instinto, tendemos a executar as ações a que estamos acostumados, e não aquelas que sabemos estarem corretas. Então em momentos de "mar calmo" a prática dos procedimentos corretos nos serve como treinamento ao cérebro para quando os dias de "tempestade" chegarem.


Protocolo de Comunicação e Resgate - além dos procedimentos técnicos e de aplicação direta pelos integrantes da expedição, que citei acima, tem um procedimento que costumo adotar e que considero de máxima importância em termos de segurança: deixar uma ou mais pessoas que não irão participar da escalada cientes do cronograma e responsáveis por dar início a uma campanha de resgate previamente acordada.

Na verdade, no caso das expedições de alta montanha, estabeleço uma cadeia de comando, com responsáveis independentes e aptos a entrarem em contato entre si:

1º - Responsável pelo refúgio/hospedaria/hotel (último local estruturado que fiquei hospedado e para onde retornarei ao final da expedição): estará ciente dos planos detalhados, inclusive data exata para retorno e será a primeira pessoa a perceber atraso e por ser conhecedora da região estará mais apta a acionar montanhistas locais ou resgatistas;

2º - Guarda-Parques (caso o local conte com este tipo de equipes): estarão cientes dos planos gerais da expedição e cientes de uma data estimada de retorno. Caso não sejam acionados pelo 1º, normalmente após 2 ou 3 dias após a data estimada entram em ação;

3º - Familiar ou Responsável no Brasil: pessoa de confiança e capaz de lidar com a eventualidade de um imprevisto de maneira calma e assertiva. Além de ciente dos planos gerais da expedição, sempre que possível entro em contato com ela para atualizar sobre qualquer mudança. Esta pessoa além de estar em posse dos dados de contatos dos dois primeiros, deverá estar em posse dos contatos das autoridades locais do país/região onde ocorre a expedição e entrará em ação caso não seja retomado contato dentro dos prazos pré estabelecidos entre ambos e também deverá ter em sua posse os meios de acionamento dos seguros contratados para a expedição.


Milestones ou Pontos de Atenção - ao estudar uma rota e definir um cronograma e plano de ação devemos identificar os principais pontos de atenção da jornada, que darão origem à estratégias de ação para manter os níveis de segurança da expedição. Costumo chamar estas estratégias de "Regras de Ouro".

Por exemplo, ao identificarmos os principais pontos de risco de avalanche em uma montanha, podemos assim determinar os melhores locais para acampamento ou descanso. Ou ainda, determinar o melhor horário do dia para expor-se a determinadas situação. No caso da expedição do Everest utilizamos esta estratégia para vencer a cascata de gelo, conhecido como o trecho mais perigoso da escalada pela face sul da montanha, e estabelecemos que a atravessaríamos sempre em horários que não ultrapassassem as 11h da manhã, o que influenciava diretamente no planejamento dos horários de saída dos acampamentos, seja na subida ou descida.

Outro exemplo é as estratégia de horários do dia de cume. Cientes da previsão do tempo para o dia pretendido devemos estabelecer marcos na subida, planejando a velocidade de ascensão, e rever a estratégia sempre que percebermos atrasos significativos em relação ao planejado. Outra precaução que deve ser tomada é o estabelecimento de um horário de retorno, independente de que ponto tenhamos alcançado, a fim de evitar o que conhecemos como "febre de cume", garantindo assim que o caminho de retorno seja feito em condições meteorológicas e de visibilidade adequadas, tendo sempre em conta que o retorno é quando estamos mais cansados.


Equipamentos

Em uma expedição levamos diversos equipamentos: técnicos como cadeirinhas, cordas, mosquetões, etc; para camping, como barracas, fogareiros, etc; de vestuário, como segundas-pele, fleeces, corta ventos, etc; sempre de acordo com o cronograma estabelecido e com o local e montanha tida como objetivo. Podemos fazer um post sobre cada uma das categorias que citei, ou inclusive um post sobre cada equipamento (vou até anotar como ideia para uma "série" rsrs), por isso não é sobre estes equipamentos que quero falar agora.

Porém, alguns equipamentos que carrego sempre comigo tem como único objetivo serem utilizados como uma medida adicional de segurança.


Vou tentar explicar que equipamentos são esses, como e quando os utilizo:

GPS - pode ser utilizado com dois objetivos, distintos e complementares:

- quando a região ou rota a ser utilizada já foi explorada anteriormente podemos encontrar disponível o que chamamos de tracklogs, que são arquivos para sistemas GPS que traçam o caminho a ser percorrido, e podemos utilizá-lo como referência para não nos perdermos da rota;

- independente de termos uma rota já traçada, podemos registrar a rota percorrida por nós, o que nos permitirá seguir o mesmo caminho de volta caso nos encontremos em dificuldade, como a entrada de uma tempestade ou a simples perda de visibilidade na montanha;

Eu atualmente utilizo como GPS um relógio Garmin Fênix 3, que registra a rota traçada. Além de me possibilitar baixar e compartilhar as rotas que realizo, em caso de perda de visibilidade ele me permite, com um bom nível de confiança, seguir o trackback, ou seja, a mesma rota para retornar ao ponto de partida. Através de app específico também permite que rotas baixadas da internet sejam carregadas no dispositivo e utilizadas como tracklog.


Rastreador - com a função de registrar os caminhos percorridos e propiciar que as pessoas acompanhem seu desenvolvimento na montanha, serve também como forma de identificar mudanças não planejadas no percurso, acionamento de resgate e localização por resgatistas.

Atualmente utilizo o SPOT Gen3, que além de cumprir com a função de rastreio, através do qual qualquer pessoa que esteja me seguindo pode acompanhar o desenvolvimento da expedição, permite que envie mensagens pré-programadas para comunicar avanços na montanha como chegada a acampamentos ou cumes. Além disso, através do botão de pânico ou através de programação de tempo parado acione efetivo de resgate vinculado à SPOT.


Radiocomunicador - pode ser utilizado com três objetivos, distintos e complementares.

- primeiro, no caso de a expedição ser realizada em locais organizados e monitorados por equipes tipo guarda parques, como muitos dos parques da Argentina e Chile, por exemplo, serve para comunicação com estas equipes para: aviso de alterações na programação, atualização da previsão do tempo, e, em casos extremos, solicitação de apoio e aviso de incidentes. Importante: ao iniciar uma expedição em parque controlado devemos comunicar este staff de nossos planos, de que possuímos rádios e solicitar orientação de uso da frequência reservada a estes. Não é incomum que estas equipe utilizem duas frequências de trabalho, uma para uso corriqueiro e outra apenas para emergências.

- segundo, para comunicação com uma base de apoio, como no caso dos refúgios e hospedagens de montanha, e atualização e acionamento da cadeia de comando anteriormente citada. Antes de sair do refúgio combinar a frequência de comunicação que será utilizada, e importante que esta seja diferente da frequência de guarda parques no caso destes existirem no local.

- e terceiro, para comunicação entre os integrantes da equipe, muito útil quando em grupos grandes, possibilitando que se dividam sem comprometimento da segurança, ou em caso de dificuldades de comunicação devido à ventos, por exemplo. Neste caso faz-se necessário que a equipe possua mais de um aparelho e novamente é muito importante certificar-se que a frequência que será utilizada não está sendo utilizada por outras equipes ou unidades de apoio da região.

Para poder atender os diferentes objetivos ao mesmo tempo é importante utilizar-se de equipamentos que suportem o uso concomitante de duas ou mais frequências de comunicação. Atualmente utilizo rádios Baofeng DualBand Modelo UV-5R.

Telefone Satelital - de uso prioritário para locais onde outras formas de comunicação, como os radiocomunicadores, não funcionem, os telefones satelitais permitem que se comunique com qualquer local do mundo utilizando-se de uma rede de satélites orbitais. Possui como principal desvantagem o peso, por isso normalmente é um equipamento utilizado por grandes expedições, na quantidade de um por equipe e utilizado apenas em casos emergenciais.


Oxímetro - diferente dos equipamentos anteriores, este não está relacionado à qualquer tipo de comunicação. Elenco como equipamento de segurança para expedições de alta montanha pois permite o monitoramento individual dos integrantes e sua adaptação à altitude. Monitorar o nível de saturação de oxigênio no sangue e os batimentos cardíacos permite a tomada de decisão sobre dar prosseguimento à expedição, postergar os planos para melhor adaptação, ou inclusive iniciar um processo de evacuação, por isso deve ser feito de maneira rotineira e com equipamento adequado e confiável.

Atualmente utilizo um oxímetro de pulso, que permite a leitura de saturação de oxigênio e dos batimentos cardíacos, com leitura gráfica e numérica.


Este post não almeja fazer uma comparação de produtos, mas apenas contar o que eu uso como forma de aumentar a segurança na montanha, minha e de meus companheiros, ou aumentar a tranquilidade daqueles que ficam em casa torcendo por nós. Alguns dos produtos citados possuem equivalentes de mercado, mas me limitei a citar aqueles que já utilizei.


Seguros

Como o nome permite pressupor, os seguros tem como objetivo serem acionados em caso de emergência, facilitando o acesso a respostas rápidas, seja de atendimento médico, seja de evacuação e resgate. É importante sempre dar atenção aos três primeiros itens deste post (Planejamento, Procedimentos e Equipamentos), de modo a manter a situação sob controle, lembrando que os seguros serão utilizados sempre como ação de contingência de danos.

Atualmente utilizo dois seguros em minhas expedições:

- Seguro Saúde: costuma ser obrigatório para ingresso a outros países, devendo ter uma cobertura mínima de custos com despesas hospitalares, normalmente serve também como seguro viagem. Temos diversos seguros disponíveis atualmente, muitas vezes vinculado a cartões de crédito internacionais, por isso não vou citar nenhum específico. Porém, ressalto que é sempre necessário checar que a cobertura prevista inclui esportes de aventura ou com corda, já que muitos seguros possuem versões diferentes de apólice quando envolve este tipo de atividade.

- Seguro Resgate: muito mais específico, este seguro tem como objetivo cobrir despesas e facilitar o acesso à mecanismos de resgate. Este tipo de apólice vem sido exigida de maneira obrigatória em alguns parques mais movimentados, como o Parque Aconcágua, na Argentina (na verdade o seguro não é obrigatório, mas caso não o possua deve fazer um depósito calção para eventual acionamento das equipes de resgate) ou algumas vezes é a única forma de ter acesso a um resgate de helicóptero em altitudes elevadas, como é o caso de altitudes superiores a 6.000m na região do Himalaya.

Atualmente, para minhas expedições, utilizo os seguros da GlobalRescue que podem englobar o Seguro Saúde e o Seguro Resgate ou apenas o segundo.



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Itens citados:

Livros:

- Escale Melhor e com mais Segurança , Flávio e Cíntia Daflon


Equipamentos citados:

- Garmin Fênix 6 (o Fênix 3 já saiu de linha, e sua versão mais atual é o Fênix 6, que possui as mesmas funcionalidades citadas)

- SPOT Gen4 (O Gen3 foi substituído pelo Gen 4 recentemente)

- SPOT Trace (similar ao Gen3, sem as funcionalidades de comunicação pré-programada)

- SPOT X (similar ao Gen3 com mais funcionalidades de comunicação e menor autonomia de bateria)


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